segunda-feira, 17 de maio de 2010

Creature fear

         A cada acorde tocado afundava alguns centímetros... receava parar de tocar e não parar de afundar, tanto quanto receava simplesmente atingir um fundo. Não deveria existir tal coisa. Mas intimamente sabia que existia. Continuou tocando freneticamente até parar de sentir seus dedos esfolados em letargia. Apaticamente esfolados, naquela noite pálida, ainda que estrelada. Correu nervosamente até cada casa gasta, saboreando cada traste passado como quem saboreia o dia findo. Naquele  momento sim, teve certeza, nada mais existia.
          Nesse torpor sonoro e tátil, sentiu claramente o gosto de tudo aquilo do qual fugia. Não negou receber as lufadas gélidas que atingiam seu rosto. Sempre sereno enfrentou a indômita natureza que o açoitava. Nunca descuidou de nenhuma nota, que seguiam se entrelaçando e estampando seu motivo. Desceu o tom, baixando a cabeça, sem reclinar o espírito. Digeriu humildemente cada dissonante. Assobiou de forma tímida um dueto consigo mesmo. Sem gargalhadas convulsivas, lágrimas contidas, gritos abafados... Deixou fluir, se entregando ao loop da levada mais do que deveria. Superou todos os meneios de seu corpo e, enfim, atingiu um falsete verdadeiro.
       Sentiu a euforia crescer junto com a escala e esboçou um sorriso ao vislumbrar os primeiros raios da aurora. O arrebol marcou o fim de sua elegia, feita de penumbra  e para ela. Repousou o violão ao seu lado, cerrou os olhos e enfim, sonâmbulo, acordou.

3 comentários:

  1. Tenho que ler mais p/ ver quem escreve melhor, tu ou o neto, ou melhor, p/ ver quem eu gosto mais de ler né! ehehehhehe beijoo
    Paula

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  2. Sendo este um primeiro comentário são deixadas claras as impressões a respeito de autor e obra como um todo.

    Num primeiro olhar, descuidado, tudo pode soar pseudo-intelectual. Porém, a aproximação, a sensibilização do leitor, permitem ao pequeno e aparentemente comum conjunto tomar uma forma inesperada, que cresce e eleva. O que se vê é, ao menos para
    um ponto de vista totalmente parcial, uma densidade de emoção e beleza que merece contemplação e que se percebe na capacidade de
    apresentação de algo novo a cada passagem. A falta de pretensões desnecessárias é outro ponto, e vem de acordo com a estrutura, que parece ler
    o mundo sem arrogância, como que na tentativa
    de senti-lo sem examiná-lo.
    Por fim, nada deveria ser visto com pressa, pois há uma tendência de que o conjunto se mostre em sua essência, que às vezes não é fielmente lida.

    Cleiton


    (Espero que tenha captado)

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