domingo, 7 de março de 2010

Quando o destino nos sorri ou ri de nós [Riding the gravy train] (Parte 1)

     Cai a noite. Nada mais piegas para o começo de uma história, seja ela de amor ou não. Mas é nesse clichê de livros ruins (das quais para meu espanto, as livrarias e bibliotecas estão cada vez mais lotadas) que tudo começa. Não sei bem se constitui um começo ou um fim, pois tudo se finda e recomeça no cair da noite, mas por puro formalismo vamos assumir que é um começo.
      Caiu a noite e aqui comecei uma jornada. Na noite anterior havia encontrado uma garota diferente, daquelas que dão vontade de gritar: "Meu Deus, é essa". Conversa rápida de bar, troca de nomes. Drinks vem chegando e sumindo, a conversa se estende, a hora se esvai... Dou meu telefone, esperando em vão receber o dela... "Lésbica, certeza!" penso. Mais conversa, mais bebida e ela simplesmente se vai. Não da minha mente.
      Amanheci em um canto qualquer do meu apartamento. Decidido. Hoje seria o dia, não acreditava que a vida me daria outra chance. Segui minha rotina normalmente até o anoitecer. Com o sol se pôs minha lucidez e meu bom senso, ou meu senso de realidade. A noite transforma as formas. Reforma e deforma. Deformei-me e meu alter ego não tinha dúvidas. Era hoje o nunca. Vaguei para o mesmo bar da noite anterior, na esperança de vê-la. Esperei até o começo da madrugada, sem sucesso. A hora passava e meu desejo recrudescia. Rapidamente atingi um estado de letargia moral e de entrega aos instintos. Sabia o que fazer.
      Vesti meu casaco e sai a caça. Fui para as ruas sujas da cidade, mas sabia que não a encontraria ali. Como achá-la sem pistas em algum lugar desse formigueiro? Não precisava de prostitutas, mas confiei no destino. Recusei todas as vadias que se ofereciam e estacionei, esperando para ser assaltado. Um grito cortou a luxúria inerente ao bairro todo. Dirigi até o local, farol desligado. Peguei o velho canivete suíço no porta-luvas e corri até onde aquela mulher gritava freneticamente. Que diabos de bairro era esse onde ninguém se importava com uma mulher gritando na noite? Em um beco, um rapazola espancava uma mulher, que se recusava a soltar a bolsa. Aproximei-me furtivamente e cravei meu canivete em sua carne. Oito vezes.
      Ajudei-a a se levantar. Ela olha em meus olhos com um misto de agradecimento e medo. "Carona?", "Seria ótimo".
        Levei-a até o subúrbio, muitos quilômetros de onde estávamos. Não conversamos no percurso. Não me importaria normalmente com esse tipo de coisa, mas não nego que queria saber o que de tão importante havia naquela bolsa. Quando enfim chegamos e destravei a porta do carro, olhei-a novamente nos olhos, agora tranquilos. "Que horas amanhã?", " as oito".

Quando o destino nos sorri ou ri de nós [Amused itself to death] (Parte 2)

      Cai a noite. Sexta-feira...tudo se transforma. A noite de sexta tem ainda um ar mais especial que as noites dos outros dias da semana. Não sei o porquê, mas me alegro em saber que nem todos se renderam à segunda de manhã. Apanho-a no subúrbio, que me pareceu ainda mais longe dessa vez. Oito horas, como combinado. Estaciono, desligo os faróis. Nem preciso chamá-la, prontamente aparece. Enfim dou uma boa olhada. Loira, alta, 20 e muitos anos, se não trinta. Bem vestida, sem parecer uma freira ou uma puta. Mesma bolsa da noite anterior. Corpo escultural. Entra no carro sem cerimônia. "Como é seu nome?" "Amelie. E o seu.", "Importa?","Não." Era exatamente o tipo de mulher que precisava para hoje.
     Vamos ao mesmo bar de todas as noites. Sentamos, peço dois whiskeys duplos. "O que você vai querer?",  "Uma marguerita", ela bebe como puta... pouco conversamos, mas já estava claro como essa noite iria terminar. Porém eu estava mesmo com sorte. No boteco, entra a lésbica de quarta. Sorri ao me ver, convido-a a se sentar conosco. Se apresenta a Amelie, pede algo forte para beber. E a conversa flui. "Então como você conheceu a Amelie?". "Vim ontem nesse bar, ver se te encontrava. Você não apareceu, fiquei bêbado como um gambá e sai na rua, te caçando"."Me encontrou? (risos)"."Não, mas fui em um bairro de putas e encontrei Amelie". Amelie só ri da situação toda, porém permaneço impassível. "E hoje, veio aqui para ver se me encontrava de novo?", "Sim. Parece que deu certo"."Está certo disso?", "Não, mas é o melhor que tenho","Uma puta como isca e uma conhecida de bar?", "É mais do que tinha ontem". Amelie sorri, enquanto remexe nervosamente na bolsa.
      As duas vão ao banheiro, e Amelie leva a bolsa em que tanto quero fuçar. Demoram um pouco. Deve mesmo ser lésbica... só espero que ela goste de variar de vez em quando. Quando voltam e se acomodam, disparo. "Vamos lá para casa?", "Nós três?", pergunta Amelie. "Não, acho que você está confundindo as coisas", diz a lésbica de quarta. "Então eu catei essa puta do outro lado da cidade para você simplesmente falar que não? Resignei minha masculinidade para satisfazer seus desejos lésbicos e você me vira as costas?". "Não sou lésbica", responde a lésbica de quarta. Termina seu drink e sai, sem falar mais nada. Ah o amor. Não suporta a verdade.
      Peço a conta e chamo Amelie. "Para onde vamos?", pergunta. "Para algum motel barato perto de onde te encontrei ontem". "Ok", responde. Era exatamente o tipo de mulher que precisava em uma noite dessas. Encontramos uma espelunca qualquer. Um forte cheiro de limpeza escondia a sordidez que emanava de lá, ou apenas protegia da sordidez que adentrava pela janela. Desnudo-a aos poucos. Beijando-lhe os lábios, puxo sua bolsa. Em vão. Tento mais forte, porém ela parece não querer se desvencilhar dela. "Solte". "Não posso". "Nem agora?", "não". "O que tem de tão importante ai?". "Algo que você perdeu faz tempo". "Ainda posso recuperar?", "não creio". "Então é algo que você não pode ficar sem?", "Provavelmente uma hora perderei, mas aqui estou apenas para te tentar e te lembrar da perda."
    Tento ignorar a bolsa e prossigo, envolvo-a. Mas não consigo parar de pensar na bolsa. Forço novamente a bolsa. Levo uma pancada nos testículos e uma cabeçada no nariz. A vadia corre pela rua enrolada em um lençol enquanto eu completamente nu a persigo. Acuo-a em um beco. O mesmo da noite anterior. Ela grita. Pergunto com uma frieza não condizente com a situação: "O que tem ai?". "Uns chamam de amor próprio, outros de dignidade. Para você seria salvação". "E para você o que é?", " Uns batons e uma carteira". Ela grita de novo.
      Sinto uma facada na barriga. Depois mais umas sete. Deixo-me escorrer pensando em tudo que ela disse. A consciência se esvai, junto com meu sangue. Ao longe ouço: " Carona?", "Seria ótimo".

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