domingo, 5 de dezembro de 2010

De Baladeiras e Urubus

         Os urubus assentados sobre os telhados do centro velho da cidadezinha não preconizavam bom agouro. Naquele calor infernal grasnavam vaiando o enterro alguns metros abaixo, ou apenas espantando a quentura. Ritmicamente, o coro maledicente era interrompido pelo bater das pedrinhas arremessadas pelas baladeiras dos meninos postados nos telhados próximos, tais quais atiradores de elite. Impassível ao embate travado alguns metros acima, tocava-se o enterro e choravam-se os mortos.
         Os carregadores do caixão, portas-bandeira do luto e investidos de toda a gravidade que o posto requere, maldiziam intimamente o peso do morto que os impediam de matar o calor no bar do Seu  Tom. As carpideiras cumpriam seu papel comprado pelo defunto, que abastado que era, não poderia se enterrar sem lamúrias. Choravam a dor de ninguém. Todo o bom povo da Vila vestia sua roupa mais cerimoniosa, na esperança de apertar a mão do prefeito ou ganhar um trocado do coronel. E inconscientemente carregavam o peso de seus próprios mortos, rumo a um jazigo inatingível. 
          O coro dos urubus foi marcado por um compasso agudo inesperado seguido do baque surdo que derrubou o caixão das mãos de seus portentosos protetores. Sobre o caixão o cadáver ensangüentado da temerária ave caiu dentro do recém-exposto vazio. 
          Aberto, por um segundo a todos ficou claro que o único corpo inerte naquela procissão era o do urubu e o de si próprios. O padre, fazendo o sinal da cruz, mandou um coroinha retirar aquela ave imunda, e com o caixão fechado, prosseguiram seu caminho, velando o vazio e carregando o peso de seus próprios mortos.
          Felizes ou não, os meninos vadios dos telhados da cidade voltaram às suas casas, carregando apenas pedras nos bolsos rotos e a incansável baladeira na mão. Sobre os ombros, nada.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Do direito de posse

Ao cigarro que nos veste  quando nada mais tenta. 

Como a palavra não falada, em tua boca faço morada, embotando teu sorriso.
Sinto cada papila tua, pupilas minhas, devotas nuas, bailando ao meu prazer.
Derrota tua ânsia de vômito, regozija-te no teu asco, defenda o meu ser.
Te cala que não é hora, não me impeças, não te apavoras, aguarda o meu aviso.

Deleita-te na minha ânsia, se agarre a cada espasmo, teu resfolego eu mimetizo.
Arda em meu desejo, enlouqueço em teu fraquejo, perdido a  padecer.
Tu te tremes, e te esforças, te esmeras e me força, mas só faço estremecer.
E de vontade vou te inflando, minha carne vai pulsando, nos espalhando sobre o piso.

Te encaro e te afogo, te abomino e te afago, não pretendo mais parar.
Sigo em ritmo constante, atendendo meus reclames, teu corpo a gritar.
Te sustentas em teu asco, se entrega ao meu compasso e aceita o que virá.

Fadados lutaremos, mas por mais que resistamos, sei que a hora vai chegar.
Fecha os olhos e aproveita, pois a hora se aproxima, não vou mais me refrear.
Não espalho sobre o piso, pois da garganta ao teu sorriso, tua boca é meu lugar!

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Esse palco não é teu

Bm          F#7                   Em       F#7               Bm
Vai, você vai caçar nos outros, o roteiro da tua vida
Vai, você vai catar os trechos, cutucando sua ferida...
Vai, você quer achar o tempo que perdeu nas noites frias
Bm          F#7             Em       F#7               G
Vai, que agora já amanhece e é cedo para ser dia...

F#                    G
O momento pereceu...
Ontem, hoje não viveu...
Vá rezar prum novo deus...
F#                           Bm
Que esse palco não é teu.

Vem, abre os olhos e sorria, que tudo esmoreceu
Vem, sente a fera que te morde, e faz dela o teu Eu.
Ahhhhhh Vem, pega o fardo que te pesa, e leva um pouco além
Ahhhhhh Vem, acorda o mundo que te sonha, e vai dormir também!

Já se desfez o céu...
E agora tu és réu...
Vá buscar teu próprio véu...
E estrelar o teu papel.

Vai e vem até o fim...
Que tua semente é ruim...
Esse palco não é teu...
Vai buscar teu próprio eu.

Untitled #1

        Estavam os dois abraçados, com as almas tão desnudas quanto os corpos. Jaziam assim imóveis, indiferentes ao tempo e imunes a ele. Ele não ousava falar nada, temendo proferir algo capaz de estragar o momento sublime em que estava. Sua mente passeou por toda a sujeira que vivera até chegar aquele momento, todas os anos e todas as noites que desperdiçara tentando se convencer de que tal coisa como a que vivenciava agora não existia. Olhou longamente para os olhos cerrados dela, imaginando se também estava a se lembrar de toda a lama que vivera ou mesmo se ela apenas dormia. Pensou em todos os pequenos atos que o levaram àquela cama de higiene discutível, em um motel barato. Enfim parecia haver algo reservado a ele diferente de medo e delírio. Respirou fundo, sentindo o ar quente exalado pelas narinas dela. Deliciou-se. Carinhosamente desvencilhou-se dos braços dela e abriu a cortina, apenas o suficiente para que a luz intermitente do poste permitisse achar o maço de cigarros. 
        Abraçada como estava, ela não ousava se mexer, nem mesmo abrir os olhos. Desde de o início daqueles longos minutos de silêncio e imobilidade, apenas esperava ter certeza que o sono ébrio houvesse se apoderado do corpo dele para poder escapulir dali. Havia passado instantes maravilhosos desde que conhecera aquele homem, mas já tinha visto o suficiente para saber que não era do tipo que se levava à vida real. Iria simplesmente embora daquele motel de beira de estrada, sem um bilhete, recado ou nota. Sentiu quando ele delicadamente se levantou e acendeu um cigarro. Desejou abraçá-lo uma vez mais e dividir aquele cigarro, dividir seu corpo, sua alma e qualquer coisa mais. Lembrou de todos os momentos passados desde que casualmente o conheceu, até se encontrarem abraçados nessa cama de higiene discutível. Se deu conta de que as ultimas 24 horas tinham sido as melhores de sua vida. Medo e desespero alternadamente passeavam pelo seu corpo, paralisando seus músculos, suas pálpebras.
        Fitou o corpo nu a sua frente. Já havia se dado conta de que sempre vivera na merda, pois de merda era feito. Não merecia tal coisa como felicidade. Estava morto por dentro, e daquele momento lindo nada de bom viria. Racionalizou toda a problemática que surgia no horizonte e visualizou todo o desespero e dor que se apoderariam dele e também dos que o cercavam. Esticou o braço para longe do luar que substituía o poste recém-queimado e serviu-se de mais uma dose do uísque barato que trouxera.
      Uma onda de coragem temerária despontou em seu peito, enrubescendo sua face. Temeu por um átimo que ele notasse, quase desejando que isso ocorresse. Sentiu seu corpo queimar para receber novamente aquele homem que repudiou à pouco. Respirou profundamente. Abriu os olhos e um grande sorriso, para saudar o início de sua reticente felicidade. Procurou em vão aquele corpo nu para fitar os olhos, entregar-se aos braços e fundir-se à alma. Nem um bilhete, recado ou nota.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Breakthrough

    Acordei. Não cedo o bastante para evitar a tempestade que despencava, mas o suficiente para pegar os ultimos raios de angústia que emanavam do fim da madrugada. Angustia que seria apenas um vislumbre do que me acompanharia pelo resto do dia. Decidido a resolver todas as merdas da minha vida, ou apenas a tomar um porre, rolei preguiçosamente por mais dez minutos em minha cama. Levantei e fiz as abluções que o cotidiano nos obriga, descrente como sou. Descrente ainda, botei o terno velho que não sei como escapou de minhas últimas tentativas de arrecadar fundos e deixei o cheiro de chuva invadir minha alma. Aquela chuva não reservava nada especial para mim, mas mesmo assim molhei as mãos e esfreguei aquela água recendendo a monóxido de carbono e carvão em meu rosto recém-barbeado. Estava tão perdido quanto a humanidade que dormia tranquilamente lá embaixo, e que não suspeitava do que eu faria. Estava perdido, mas acordado.
     Fazia um mês que ela tinha ido. Já tinha provado ser capaz de suportar todo tipo de degradação e rúina, perdas eram apenas mais um capítulo do meu dia. Entretanto naquele momento me dei conta de que algo se partiu dentro de mim, algo que nunca se regeneraria e que não seria possível viver sem. Eis a verdade: ela nunca me pertenceu. Esteve alguns dias em meus braços, de fato, contudo nunca fora realmente minha. Da mesma forma que entrou, saiu de minha vida, e apesar de sentir a dor mais profunda que até então experimentara, eu apenas a deixei ir. Sem essa de bancar o stalker ou de tentar recriar o passado. E os anos passaram sem que fizesse uma loucura ou cometesse pelo menos algo irracional o suficiente para ser correto. Um encontro fortuito, casada com filho em um shopping qualquer, um breve olá, aquele papo de como você está, como vai a sua mãe, que bonito o seu filho, está trabalhando aonde... E só. Nada de trocas de telefone ou daquela transa homérica e raivosa a qual o ensejo clamava por. 
     Nessa época, o processo de decomposição moral que me acometeu já havia começado. E mesmo indo mais baixo do que imaginara ser capaz, a presença ausente daquela mulher me sustentava. Nunca tentei substituí-la pelas moças que minha vida bukowskiana provia, ou encontrá-la no fundo de uma garrafa. Não me atrevia a caçá-la, por motivos que desconheço até hoje. Até que ouvi aquele sobrenome incomum no jornal local. Hoje completava um mês que ela havia se metido naquele acidente estúpido e fatal, uma morte digna para mim. Mas não para ela. Me recusava a aceitar que nunca mais a encontraria fortuitamente em algum supermercado, que nem mais por um átimo veria aquele sorriso ou aquela cara de safada que não via a quase 5 anos. Deixei os outros prantearem o seu enterro e por um mês trabalhei o meu luto com afinco.
       Nem todo álcool, tabaco e pornografia que estava ao meu alcance conseguiram fechar aquela lacuna em mim. A ausência dela encheu minha mente de se´s e talvez´s até um ponto em que respirar era por demais penoso. Um suicídio valoroso não era opção. Uma morte digna para ela, mas não pra mim.
      Por isso hoje acordei decidido. Iria amarrar todas as pontas soltas que havia largado pela minha existência, iria conectar os pontos e seguir a corrente até encontrar um sorriso amigável, uma oportunidade perdida ou um chute nos ovos. Ou pelo menos tomar um porre. Perceber que só se vive uma vez, que o tempo não pára e que a vida é hoje não me bastava, já havia passado dessa idade. Ia realizar hoje o que os últimos 20 anos de colhões espremidos tinham me negado. Ia mudar de emprego, arrumar uma namorada ou fugir para Fiji. Ia abrir uma igreja evangélica e encher o rabo de dinheiro. Ia encher a cara de Blue Label em um restaurante chique e ser preso tentando fugir sem pagar a conta.Ia...
      Nas grandes cidades de hoje, a violência é uma constante. Quinze anos atrás, nunca resistiria a um assalto. Mês passado provavelmente teria surrado o bastardo até que minha mão latejasse. De qualquer forma, falar "não hoje, filho-da-puta", cuspir e dar as costas não parece a saída mais inteligente. O estampido, a dor e o calor que vieram depois se perderam no turbilhão que surgiu a minha frente. Todas as merdas de uma existência se resolveram em segundos, durando tão-somente o tempo necessário para a enxurrada garantir que eu não deixaria marcas. Talvez não em paz, mas ao menos satisfeito, respirei profundamente uma última vez. Melhor assim. Todos sabemos que desde que levantei da cama hoje cedo, mas não o suficiente para evitar a borrasca, estava mais propenso ao porre.


segunda-feira, 6 de setembro de 2010

9 crimes

  Escrever: sem as minhas metaforazinhas e comparações de sempre, sem meu distanciamento emocional de sempre, sem meu ascetismo e conformismo. Sem o compromisso com a derrota, com a doença e a descrença. Quero apenas escrever, copiar mais aos outros e menos a um alter ego que me foge e persegue. Fingir que o poeta não finge e olhar para dentro sem procurar um vazio, ou inventar um. Levantar a cabeça, olhar ao redor e ignorar os pensamentos conspiratórios que forjo. Who wanna be such an asshole?
  Ilusão: para que me iludo. Para que escrevo? Busco um propósito, busco um objetivo, ao menos metas? Me encontro e me perco a cada palavra, ou apenas não estou? (lá vou eu caindo de novo na mesmice, será apenas a realidade?)
  Arte: arte de testar até onde posso chegar, para ver até onde me martirizo. Acato a dor alheia como forma de não me submeter a minha própria. A dor alheia tolhe a minha e a joga entre o Eu e o vazio. Esmaga-a em meu peito roubando meu fôlego e minha dor de cabeça. 
   (des)Controle: gerenciar o sofrimento em camadas e extrair dele tudo que um onanismo sado-masoquista proporciona. 
  Sentir: se enganar é fácil, a dificuldade reside em se manter iludido. Epifanias me varrem a mente todos os dias, o que me obriga a esforçar-me cada vez mais para manter-me entorpecido. Parodoxal. Entorpecido para fingir. Fingir para sofrer, pois sofrer é sentir.
   Negar: negar o que se auto-inflinge é mais que um ato de fé, é um exercício de cara-de-pau.
  Desconstrução: eu sei que a loja vai falir antes que eu junte a grana necessária para comprar o que eu quero. Também não estou apto para um financiamento estatal. Quem sabe alguém vai simplesmente pegar o último do estoque. (É difícil se livrar das metáforas)
  Fugir: fugir do seu pseudo ser para encontrar o seu verdadeiro serve para quê? I´m wearing the inside out.
   Hoje: só mais 5 minutinhos.

sábado, 26 de junho de 2010

Ufanismo, ou o Nirvana dos Vencidos

       Haverá o dia em que  tudo será deixado para trás. A dor, apenas uma cicatriz. Os erros serão motivo de riso. E nos fartaremos a rir! O toque das peles desnudas, a clamar pelo o outro, afagará nossas almas nos dias tristes esperando o momento para nos afogar em solidão. A ausência será tão insuportável que nos obrigará a abdicar de todo nosso eu. Sacrifício mínimo, pois teremos absoluta certeza que ao primeiro sinal do outro tudo ficará bem.
     Nesse dia, o mundo se apequenará ao seu real tamanho. A sede será eternamente esquecida, a fome, superada e cheios um do outro nos fartaremos, até estarmos saciados. E cheios um do outro, sorriremos ao lembrar de como éramos tolos ao necessitar de tudo o que agora era vão e inútil em nossa redoma sacra.  
      Não serão mais necessários planos, pois sempre estaremos no lugar certo, na hora certa. O dia sempre será mais belo do que o anterior e as intempéries que surgirem serão somente manchas a nublar nosso arrebol. Emanaremos um jardim por onde passarmos, florindo territórios estéreis com a vastidão de nossa completude. E povoaremos cada centímetro com o reflexo da nossa felicidade.
     O mundo poderá sentir inveja, e haverá quem tente corromper e conspurcar nosso paraíso privado. Sentiremos pena desses esforços ridículos, evitando o escárnio aos que tentarem apagar o indelével. O tempo poderá se comover e congelar todos os momentos, estabelecendo um fluxo perene de saciedade e sintonia. Pode até, vingativo tempo, nos negar os pequenos momentos e arrastar um de nós  prematuramente a um fim sozinho, mas nunca solitário. A lembrança, dádiva inefável, reconfortará até o dia que sejamos um para sempre.
       Porém não é hoje esse dia. Talvez não seja amanhã, ou mesmo nunca chegue. Hoje há o Eu, o mesmo que não mais me nutre e brada por algo inalcançável. Posso atender à busca irracional e imprevisível a qual sou conclamado ou então somente esperar, sendo apenas meio, e vagar na minha própria jornada irracional e imprevisível rumo ao dia seguinte. Não ouso escolher um caminho, então erro pela estrada aberta a minha frente entoando o mantra dos conformados: "Talvez amanhã". 

domingo, 20 de junho de 2010

Miopia

Pois ante a dúvida, tudo é belo!

sexta-feira, 18 de junho de 2010

The Great Gig on the Sky

     Quando enfim consegui proteger a chama do tremeluzente fósforo (a caixa não me permitia mais muitas tentativas...), vislumbrei. O vento por um segundo não me preocupou e tive a certeza de que o que seria o último cigarro da noite (ou da vida) resistiria incólume às tentativas sádicas de assassínio por parte da Noite. A Noite que incansável e freqüentemente me privava de memórias e me abastecia de pequenos prazeres estava decidida a mostrar quem realmente mandava. O vento gélido que obrigava o álcool de meu copo a resistir aos tremores de meus músculos, que obrigava a minha garganta a se manter aberta apesar da infestação purulenta já estabelecida ali, que fazia meus dedos rígidos se agarrarem à última sensação de pertencerem a mim... A escuridão que brindava minha miopia com sombras difusas... Os sussurros dispersos que enchiam de dúvidas meus ouvidos... A Noite veio e tornou meus sentidos inúteis. Só posso agradecê-la.
    Resisti a tudo. Não por teimosia ou nobreza. Simplesmente resignei-me a resistir. Estava biologicamente programado para ignorar as intempéries e seguir, acomodado como estava. Assim contra minha própria vontade, vi tudo que ocorria em mim com a frialdade de um observador externo. Vi quando a Noite trouxe a Solidão e o Abandono. Vi quando passeou belos quadros de Felicidade e Amor, a debochar de mim. Vi o Escárnio alheio pintado em vários tons. Vi o Desespero, o Temor e a Morte. Tudo isso teria afetado qualquer homem irremediavelmente, e por fim surgiu a Loucura. Tentei-me é verdade, mas não essa noite. Não após o que vislumbrei entre a chama de meu cigarro mal aceso, nas borras no fundo de meu copo, no tremor de minha musculatura relapsa...
     Quem me mostrou, de fato, foi a Noite. Não sei que objetivo tinha com isso, se me dar forças ou tomá-las de vez. Fitei de relance e aos poucos fui me absorvendo até perder a noção de tempo e espaço. Temi o que encontraria, tanto quanto ardentemente desejei vê-lo. Duvidei até o ultimo segundo que realmente estivesse lá. Estava lá, no fundo de meu copo, nas cinzas de meu cigarro, em cada fibra de minha musculatura flácida. Observei por muito tempo, até que pudesse ver, e vi tudo ainda mais demoradamente, até que pudesse entender. E, enfim, revelou-se a mim.
      Inútil o esforço do vento. Vãs as ações do mundo ao meu redor. Pois antes e acima de tudo pairava a minha Sina. Estava fadado a sofrer, não de padeceres cotidianos e de pequenos desconfortos. Para  mim estava reservado o eterno vazio, que me blindava contra o vento gélido. Minha Sina, outorgada por poderes maiores e incógnitos ia me guiar até o fim do mundo, sem nunca me permitir descanso. Sempre olharia para frente e veria brumas, sempre olharia para trás e veria trevas. Não haveria aceitação que permitisse tolerar meus dias e minha Sina me privaria, sobretudo, da Morte. 
    Minha acomodação convenceu-me de que a batalha estava perdida. Não haveria sentido em tentar se adequar ou bradar aos quatro ventos (todos gélidos) minha angústia. Ia tentar provar em mim que há coisas maiores, maiores até que minha Sina. Desenganado e sem ilusões tinha, enfim, traçado meu rumo: caçaria o lado escuro da Lua.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Creature fear

         A cada acorde tocado afundava alguns centímetros... receava parar de tocar e não parar de afundar, tanto quanto receava simplesmente atingir um fundo. Não deveria existir tal coisa. Mas intimamente sabia que existia. Continuou tocando freneticamente até parar de sentir seus dedos esfolados em letargia. Apaticamente esfolados, naquela noite pálida, ainda que estrelada. Correu nervosamente até cada casa gasta, saboreando cada traste passado como quem saboreia o dia findo. Naquele  momento sim, teve certeza, nada mais existia.
          Nesse torpor sonoro e tátil, sentiu claramente o gosto de tudo aquilo do qual fugia. Não negou receber as lufadas gélidas que atingiam seu rosto. Sempre sereno enfrentou a indômita natureza que o açoitava. Nunca descuidou de nenhuma nota, que seguiam se entrelaçando e estampando seu motivo. Desceu o tom, baixando a cabeça, sem reclinar o espírito. Digeriu humildemente cada dissonante. Assobiou de forma tímida um dueto consigo mesmo. Sem gargalhadas convulsivas, lágrimas contidas, gritos abafados... Deixou fluir, se entregando ao loop da levada mais do que deveria. Superou todos os meneios de seu corpo e, enfim, atingiu um falsete verdadeiro.
       Sentiu a euforia crescer junto com a escala e esboçou um sorriso ao vislumbrar os primeiros raios da aurora. O arrebol marcou o fim de sua elegia, feita de penumbra  e para ela. Repousou o violão ao seu lado, cerrou os olhos e enfim, sonâmbulo, acordou.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Anos 10: Diário de Bordo

        Acordo em uma gélida manhã (não tão manhã assim) ensolarada de fim de maio. Ligo a TV, droga é domingo. Vejo um imbecilizante futebol, seguido de imbecilizantes programas de auditório, todos lotados por imbecis. Todos tentam vender o que se pode chamar de felicidade. Não creio que seja pra mim, sorte a minha. Desisto logo e ponho o tênis de jogging (wtf?!) que comprei pela internet. Lembro-me dela, e desisto de minha quase quebra de sedentarismo. Lixo vendido como notícia, entre anúncios absurdos e "enlarge your penis". 
       Num arroubo de reação corro ao shopping para tentar aplacar esse sentimento indesejado que me aflige sempre. Perdido entre futilidades e levianos seres, visito uma livraria apenas para confirmar as minhas suspeitas: mais esterco, só que dessa vez encadernado. Talvez se Deus (aquele de todos nós) castigasse menos Nardoni`s e mais Stephanie Meyers´s o mundo seria um local mais habitável. E ao pseudo-escritor que ousou escrever a biografia não-autorizada de um ator com menos de 25 anos e nada memorável na carreira, saiba que há mais círculos no inferno do que Dante descreveu.
       Corro ao parque para ver patos politicamente corretos dividirem o lago com cisnes e outras aves inomináveis. Todos ao redor se abraçam e se saúdam em uma dança hipocritamente ensaiada a cada capítulo da novela das oito. Não consigo suportar o asco, ligo o rádio e fecho os olhos, apenas para maior padecer. Me recuso a explanar melhor o assunto, por demais traumático. 
     Só me resta retornar ao cotidiano que aos poucos tenta arrancar meu âmago, pedaço a pedaço. Como um Prometeu pós-moderno, regenero a cada fechar de olhos ou suspiro condescendente pelo que me cerca. Não, não é arrogância ou desprezo... Apenas estou acorrentado a uma época que nunca me pertenceu, em uma terra de outros. Errados eles, ou eu? Não importa, apenas fecho os olhos e suspiro mais uma vez.


sexta-feira, 7 de maio de 2010

Esse Floyd podia ser eterno

             Aqui estou, 2 e meia da manha, mais doses do que conseguiria aguentar no fígado e no sangue... Atom Heart Mother tem 23 minutos, que passaram em um piscar de olhos agora.... que posso fazer? Admito que os caras fizeram a parte deles, mas uns 10 minutos a mais não iriam mal.... custava solar mais 25 centavos?
             Nesse momento esqueço qualquer problema, complicação, estresse, e o que seja e me perco nas vozes russas falando coisas incompreensíveis que fazem todo sentido para mim. Junto o meu íntimo que me diz para fechar os olhos, baixar o queixo, cerrar os dentes e correr, pela minha vida e a de ninguém... Pego isso deixo em segundo plano e me entrego de corpo, alma e espírito (etílico, claro) a esse tecladinho escroto e ao "silence on the studio... Que mais posso almejar? Que mais posso merecer?
              Fecho os olhos, negando qualquer possível epifania ou epitáfio... só quero mais dez minutinho de atom heart mother para indivisívelmente seguir, ad eternum, em um solo dos outros, apenas rezando e clamando por mais dez minutinhos.

domingo, 7 de março de 2010

Quando o destino nos sorri ou ri de nós [Riding the gravy train] (Parte 1)

     Cai a noite. Nada mais piegas para o começo de uma história, seja ela de amor ou não. Mas é nesse clichê de livros ruins (das quais para meu espanto, as livrarias e bibliotecas estão cada vez mais lotadas) que tudo começa. Não sei bem se constitui um começo ou um fim, pois tudo se finda e recomeça no cair da noite, mas por puro formalismo vamos assumir que é um começo.
      Caiu a noite e aqui comecei uma jornada. Na noite anterior havia encontrado uma garota diferente, daquelas que dão vontade de gritar: "Meu Deus, é essa". Conversa rápida de bar, troca de nomes. Drinks vem chegando e sumindo, a conversa se estende, a hora se esvai... Dou meu telefone, esperando em vão receber o dela... "Lésbica, certeza!" penso. Mais conversa, mais bebida e ela simplesmente se vai. Não da minha mente.
      Amanheci em um canto qualquer do meu apartamento. Decidido. Hoje seria o dia, não acreditava que a vida me daria outra chance. Segui minha rotina normalmente até o anoitecer. Com o sol se pôs minha lucidez e meu bom senso, ou meu senso de realidade. A noite transforma as formas. Reforma e deforma. Deformei-me e meu alter ego não tinha dúvidas. Era hoje o nunca. Vaguei para o mesmo bar da noite anterior, na esperança de vê-la. Esperei até o começo da madrugada, sem sucesso. A hora passava e meu desejo recrudescia. Rapidamente atingi um estado de letargia moral e de entrega aos instintos. Sabia o que fazer.
      Vesti meu casaco e sai a caça. Fui para as ruas sujas da cidade, mas sabia que não a encontraria ali. Como achá-la sem pistas em algum lugar desse formigueiro? Não precisava de prostitutas, mas confiei no destino. Recusei todas as vadias que se ofereciam e estacionei, esperando para ser assaltado. Um grito cortou a luxúria inerente ao bairro todo. Dirigi até o local, farol desligado. Peguei o velho canivete suíço no porta-luvas e corri até onde aquela mulher gritava freneticamente. Que diabos de bairro era esse onde ninguém se importava com uma mulher gritando na noite? Em um beco, um rapazola espancava uma mulher, que se recusava a soltar a bolsa. Aproximei-me furtivamente e cravei meu canivete em sua carne. Oito vezes.
      Ajudei-a a se levantar. Ela olha em meus olhos com um misto de agradecimento e medo. "Carona?", "Seria ótimo".
        Levei-a até o subúrbio, muitos quilômetros de onde estávamos. Não conversamos no percurso. Não me importaria normalmente com esse tipo de coisa, mas não nego que queria saber o que de tão importante havia naquela bolsa. Quando enfim chegamos e destravei a porta do carro, olhei-a novamente nos olhos, agora tranquilos. "Que horas amanhã?", " as oito".

Quando o destino nos sorri ou ri de nós [Amused itself to death] (Parte 2)

      Cai a noite. Sexta-feira...tudo se transforma. A noite de sexta tem ainda um ar mais especial que as noites dos outros dias da semana. Não sei o porquê, mas me alegro em saber que nem todos se renderam à segunda de manhã. Apanho-a no subúrbio, que me pareceu ainda mais longe dessa vez. Oito horas, como combinado. Estaciono, desligo os faróis. Nem preciso chamá-la, prontamente aparece. Enfim dou uma boa olhada. Loira, alta, 20 e muitos anos, se não trinta. Bem vestida, sem parecer uma freira ou uma puta. Mesma bolsa da noite anterior. Corpo escultural. Entra no carro sem cerimônia. "Como é seu nome?" "Amelie. E o seu.", "Importa?","Não." Era exatamente o tipo de mulher que precisava para hoje.
     Vamos ao mesmo bar de todas as noites. Sentamos, peço dois whiskeys duplos. "O que você vai querer?",  "Uma marguerita", ela bebe como puta... pouco conversamos, mas já estava claro como essa noite iria terminar. Porém eu estava mesmo com sorte. No boteco, entra a lésbica de quarta. Sorri ao me ver, convido-a a se sentar conosco. Se apresenta a Amelie, pede algo forte para beber. E a conversa flui. "Então como você conheceu a Amelie?". "Vim ontem nesse bar, ver se te encontrava. Você não apareceu, fiquei bêbado como um gambá e sai na rua, te caçando"."Me encontrou? (risos)"."Não, mas fui em um bairro de putas e encontrei Amelie". Amelie só ri da situação toda, porém permaneço impassível. "E hoje, veio aqui para ver se me encontrava de novo?", "Sim. Parece que deu certo"."Está certo disso?", "Não, mas é o melhor que tenho","Uma puta como isca e uma conhecida de bar?", "É mais do que tinha ontem". Amelie sorri, enquanto remexe nervosamente na bolsa.
      As duas vão ao banheiro, e Amelie leva a bolsa em que tanto quero fuçar. Demoram um pouco. Deve mesmo ser lésbica... só espero que ela goste de variar de vez em quando. Quando voltam e se acomodam, disparo. "Vamos lá para casa?", "Nós três?", pergunta Amelie. "Não, acho que você está confundindo as coisas", diz a lésbica de quarta. "Então eu catei essa puta do outro lado da cidade para você simplesmente falar que não? Resignei minha masculinidade para satisfazer seus desejos lésbicos e você me vira as costas?". "Não sou lésbica", responde a lésbica de quarta. Termina seu drink e sai, sem falar mais nada. Ah o amor. Não suporta a verdade.
      Peço a conta e chamo Amelie. "Para onde vamos?", pergunta. "Para algum motel barato perto de onde te encontrei ontem". "Ok", responde. Era exatamente o tipo de mulher que precisava em uma noite dessas. Encontramos uma espelunca qualquer. Um forte cheiro de limpeza escondia a sordidez que emanava de lá, ou apenas protegia da sordidez que adentrava pela janela. Desnudo-a aos poucos. Beijando-lhe os lábios, puxo sua bolsa. Em vão. Tento mais forte, porém ela parece não querer se desvencilhar dela. "Solte". "Não posso". "Nem agora?", "não". "O que tem de tão importante ai?". "Algo que você perdeu faz tempo". "Ainda posso recuperar?", "não creio". "Então é algo que você não pode ficar sem?", "Provavelmente uma hora perderei, mas aqui estou apenas para te tentar e te lembrar da perda."
    Tento ignorar a bolsa e prossigo, envolvo-a. Mas não consigo parar de pensar na bolsa. Forço novamente a bolsa. Levo uma pancada nos testículos e uma cabeçada no nariz. A vadia corre pela rua enrolada em um lençol enquanto eu completamente nu a persigo. Acuo-a em um beco. O mesmo da noite anterior. Ela grita. Pergunto com uma frieza não condizente com a situação: "O que tem ai?". "Uns chamam de amor próprio, outros de dignidade. Para você seria salvação". "E para você o que é?", " Uns batons e uma carteira". Ela grita de novo.
      Sinto uma facada na barriga. Depois mais umas sete. Deixo-me escorrer pensando em tudo que ela disse. A consciência se esvai, junto com meu sangue. Ao longe ouço: " Carona?", "Seria ótimo".

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

12 linhas (ou Canto para a Modorra)

Das sombras que me perseguem
Às sombras que eu provoco
Vejo tudo escuro e oco
Opaco ao toque e ao sussuro
Nas sombras em que me esmurro
Sinto a brisa dos vencidos
Até os versos não lidos
Trazem a dor de seu refrão
Sinto o mundo pela mão
Do poeta mal-amado
O sofrimento azeitado
Pela dor no coração

Trago os olhos ofuscados
Trago a lua e trago o eu
Não sei quem foi que venceu
A lida do cantador
Eu troco tudo que for
Por um dia de princesa
Para me afogar na fineza,
e me transformar em meretriz
Não sei porque que eu quis
Essa vida devagar
Eu só quero poder gritar:
"De tudo vi, de tudo fiz."

De cada gemido ouvido
Quero ser o capataz
Me perder em sempre mais
E clamar por lucidez
Ganhar desfaçatez
Me punir pelo temor
Me agarrar ao fervor
De cada gole do vinho
Seguir a vida de mansinho
Rindo da sobriedade
Rezando para a verdade
Se perder em seu caminho

Não me venham com um lastro
Com carinho ou com afeto
O meu desejo e objeto
Não se encontra em cada flor
Quero tudo de uma só cor
Expandindo o movimento
Para nunca achar alento
Na riqueza ou na miséria
Bruxuleando em cada artéria
Cantando ritos ateus:
"Me leve a vida, meu Deus,
Mas não me leve a pilhéria."

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Vale do Jucá

Nesse clima de fim de férias, nada mais digno do que parar pra pensar no que ficou. De todos os momentos passados nesses parcos 2 meses de descanso, ócio e vadiagem sei que apenas alguns serão selecionados para o hall das coisas que realmente me marcaram. E o resto, para onde vai?
As lembranças são pedaços do mundo e das pessoas que você gosta que lhe são ofertados para te dar apoio nos momentos difíceis. Sei... As lembranças são simultaneamente aquelas plumas que lhe acariciam o ego e mascaram os acontecimentos mais amargos, e os petardos sempre dispostos a acabar com o nosso dia. Assim como conviver com elas?
Todas as lembranças são cruelmente encarceradas no fundo de nossa mente. Medida mais que necessária. Não há decoro ou caráter que resista a todas elas. As mais tenras coitadas, são relegados a mesma escuridão que  as mais encardidas, isso quando não são suplantadas pelas vergonhosas rememorações de nossos atos diários ou isolados. Existem as teimosas, que insistem em marcar sua presença nos momentos mais inoportunos, as felizes que controlam a singela vontade de se matar e as simplesmente inesquecíveis. 
As lembranças que realmente importam, as que nos tocam indelevelmente e com a ternura do olhar perdido sustentam a nossa dor e o flagelo cotidiano costumam ser as mais despretensiosas. Hoje olho para trás e por mais que não consiga distinguir cada momento simples e puro de felicidade sei que elas estão lá, velando por mim. E assim espero, até chegar o dia em que olhar para trás não seja apenas singles desconexos, mas uma obra coesa que possa chamar de minha.

Obs1: Existem também aquelas que inutilmente encarceramos, pois na verdade estamos apenas rezando para conseguir acessar o HD que todos nós carregamos e sem nenhuma piedade deletar a dita cuja.
Obs2: É incrivelmente fácil lembrar daquele menino que te batia na escola, mas tente se lembrar do nome da morenaça que você conversou na festa!

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Aos rígidos, os caixões.

Verme imoralista, verme amoralista, verme anarquista, verme niilista, verme Eu. O verme-eu a corroer a sociedade do seu âmago, com a profundidade das palavras simples e a objetividade de quem fala o óbvio. Na minha desmoral invado as entranhas de tudo e de todos. Ou serão apenas minhas? Ou será apenas eu? No anti-gozo de minhas faculdades mentais não consigo chegar a uma conclusão. Muitas digressões no meio do caminho. No meio do caminho rastejo, imoral e amoral como sempre. No caminho dos outros ou em meu caminho? Meio caminho?
O caminho é longo para os que partem. Mas nunca parto. Permaneço na espreita de mais um a cair aqui, a zombar de todos os rijos corpos que desabam enquanto me avaliam e me julgam. Necessitado espero virem correndo em minha direção, tão necessitados como eu, mas sem a paciência necessária. Necessitados todos. Tropeçam um após o outro em seu próprio discurso, irretocáveis até. E sigo rastejando por suas entranhas ante o regozijo geral da nação. Ou apenas meu próprio?
Verme-eu observo. Ascético quase, porém apenas cínico. Impassível entre tantas entranhas alheias e conhecidas. Devoro diligentemente tudo, tomando o cuidado necessário de sempre tudo rejeitar. Assim prossigo. Na terra como o verme, como verme-eu, como eu-verme e como eu. Com a moleza peculiar que só os vermes possuem, e o plus inerente ao Eu. Mole, nunca hirto como os que aqui estão. Onde estão?
Eu ver-me. Não perco cada passo em falso, cada caminhar penoso, cada perna trêmula. Apenas observo cair. E deleito-me. Aceito o anti-gozo, pelo ante gozo. Aproveito-lhe em cada segundo. Acordarei em um ressaca homérica vomitando em flashbacks todos os tensos corpos indigeríveis? Ou apenas não acordarei?
Acordar. Farei-o na terra como o verme e como o eu. Eu ver-me. Não em caixões de madeira cara, ou mesmo de ripas. Tudo me parece acessível, nenhum cetim no mundo é capaz de negar ao verme sua presa, à presa seu verme. Ver-me no escuro. A claridade dentro das entranhas de todos os estranhos que habito me cegam. Realmente cheguei lá? Sinto apenas o sabor da madeira nova e da seda vermelha. Andando em círculos talvez? Parei de sentir o progresso. Ver-me. Verme. Será essa a resposta para tudo?
Não sei aonde cheguei. A cada passo meu corpo lânguido se enrijece e se contrai. Cada vez mais tenso e tenro. Saboreio-o apenas para amargar meu paladar. Ver-me. Irei a algum lugar? Sairei da terra para qual fui feito? Na terra onde sempre fui o eu e o verme. Adentro-a cada vez mais. Abrindo meus olhos e enrijecendo. Reconhecendo cada entranha digerida, enfim digerida. Afundo-me. Meu corpo teso resiste em rastejar mais. Caio na claridade que me ofusca, porém só agora vejo. Estou de volta a superfície entre minhas tão conhecidas entranhas. Duro. Imoral, amoral e paralisado. Aos rígidos, os caixões.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O chamado

Eu deveria ter ido ontem. Eu deveria ir hoje, e quase me atrevo a dizer que deveria ir amanhã. Pois algo me chama. A janela bate marcando o fim de um capítulo do meu dia, conclamando à cerveja gelada que está no bar. O peito dói as ingerências ulteriores, bem como o fígado. A chuva anuncia que meu tempo acabou. Mas algo me chama.
Reneguei as calcinhas usadas esquecidas na ebriedade cega da sexta à noite, reneguei o trabalho acumulado por esses meses de esbórnia desenfreada, reneguei a frase não dita de ontem, o conto não escrito de amanhã, a corda partida do violão, o extrato bancário que fazia volume na carteira, o cinema pseudo-intelectual da sessão das dez, os autores que proclamo como profetas sem nem lhes ler um parágrafo...
Renego a família, os amigos, o bar, o café, o tempo e o espaço. Não por desdém, superioridade ou qualquer coisa que o valha. Apenas o faço com a certeza do inseto que insiste em pousar na tela do meu notebook. Tanto ele como eu sabemos que a minha tela é preciosa demais para ser suja por sua morte. Espero que a vida me dê isonomia.
Não vou renegar deus, o capeta ou mitra. Pouco me importa onde Lênin choraminga suas dúvidas e Smith sente seus demônios. Renego só o cansaço da falsa importância. A minha culpa me renegou, não há por que olhar para fora agora. Mas algo me chama.
A janela bate marcando o fim do capítulo da novela. Não ouço. Reneguei-a bem como o coaxar da minha consciência. O resto se foi, o luar e minha dor. O chamado urge, expulsando as ultimas gotas do meu ser de dentro da garrafa e de mim. Levanto-me, branco como o palimpsesto dos pecados e sigo. Enfim, um chamado a atender.
A janela bate marcando o fim de mais um capítulo da existência humana, ou só daquele velho dormindo na calçada. Passo no banco, tiro o extrato. Um leve tamborilo anuncia que a chuva voltou. Abro a janela.

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