sábado, 21 de novembro de 2009

A passagem (By Vitor Domício)

Como nem sempre as musa me sorriem, mas frequentemente sorriem ao meu brother Domício, apreciem essa obra:

A passagem

O esgoto entupido da área de serviço perturbava seus sonhos. Os besouros subiam na sua cabeça. Toda aquela sujeira se mostrava presente mais do que nunca em sua vida. Manchava a sua existência com o sangue dos desejos suicidas, e com o suor dos trabalhos inúteis.

As contas do fim do mês pareciam engolir a minúscula quase-renda conseguida a custa de lágrimas contidas, gritos engolidos e mortes mal vividas. As contas do fim do mês pareciam...O fim do mês sempre parecia tão longe. Ele parecia tão perto. Ele não parecia. Não parecia porque o fim do mês era a passagem, a obscena passagem de um dia extremamente comum e ante-normal para outro inútil e maldito dia; porque o fim do mês era igual ao começo e ao meio, e era como tudo nessa vidinha de catacreses. Era como tudo e como todos. Não era.

E por isso não se tinha nenhuma empolgação com o fim do mês, com o começo, ou com o meio. Seu mal-cheiroso meio, meio do caminho, meio da vida. Nem nada nem tudo, apenas metade. Viver metade; sentir metade; fazer metade; existir só metade.

Fazia a passagem daquele dia para aquele outro dia como todos os outros dias: dormindo. Dormia, quando era preciso acordar. Dormia, quando era preciso viver, acordar para as mortes que existiam em suas breves mastigadas naquele pão endurecido comprado no dia anterior, que ela comia no café amargo da sua manhã.

A passagem de todos os dias para todos os outros dias era igual a passagem de todos os dias para todos os outros dias.Nada de enriquecedor no lençol sujo que a abraçava no frio sentido pelo coração fútil. Nada de estimulante na dor que o pé podia contemplar em todos os inesgotáveis instantes que pisava, que andava, dando os passos medíocres em direção ao espelho... até parar. Mas nesse caso parar era uma saída. Já que ela não parava nunca com as pré-emoções afastadas dos olhos e contidas na lágrima incapaz de engrandecer o oceano. Mas era necessário parar?

A ignorância de seus falsos sentidos era cômica. Fazia-se rir da maravilhosa desgraça de todo dia sobre o sangue escorrido no túmulo de sua mente.

Agora, preparava-se para outra passagem. Fazia. Realizava. Vivia com a certeza de que tudo seria comportadamente igual ao que sempre foi, chegando a rir do criado mudo, por ter a certeza de que ele nunca deixaria de ser criado mudo, ela sabia. Sabia que tudo, todas aquelas imundas coisas que contribuíam para seu mundo ser daquele jeito, tinha certeza de que tudo nunca ia mudar, e de que nada seria diferente, tendo uma falsa impressão de controle e supremacia sobre as coisas. Mas as coisas é que a controlavam.

Ela realizava aquele ritual antes da passagem, repetia roboticamente aquelas mesmas e velhas ações do pavoroso sempre. Ela sabia exatamente como ia ser depois da passagem. Ela sabia. Depois da passagem ia ser igual a antes. E o amanhã se confundia com o hoje, que se confundia com o ontem.Ela sabia. Isso a assassinava. Isso a acabava sem a piedade sentida ao matar sem querer a formiga na mesa com o copo de saúde do almoço.

Ela continuava... Continuava... Seguindo algo que parecia fazê-la voltar sempre ao começo. Indo a algum lugar ou a lugar algum, de modo a dar dois mentirosos passos para frente, e dois verdadeiros para trás.


Vitor Domício

2 comentários:

  1. estupendo...flanei no universo da narrativa !!!!!!!!!!

    ResponderExcluir
  2. Parabéns Domício.
    Já vi que esse sobrenome tem o peso de grandes homens.

    Vou pensar duas vzs antes de rir da desgraça do cotidiano para não acabar cometendo um grande erro: dar dois mentirosos passos pra frente, e dois verdadeiros para trás.

    Pedro Queiroz

    ResponderExcluir

Seguidores