domingo, 5 de dezembro de 2010

De Baladeiras e Urubus

         Os urubus assentados sobre os telhados do centro velho da cidadezinha não preconizavam bom agouro. Naquele calor infernal grasnavam vaiando o enterro alguns metros abaixo, ou apenas espantando a quentura. Ritmicamente, o coro maledicente era interrompido pelo bater das pedrinhas arremessadas pelas baladeiras dos meninos postados nos telhados próximos, tais quais atiradores de elite. Impassível ao embate travado alguns metros acima, tocava-se o enterro e choravam-se os mortos.
         Os carregadores do caixão, portas-bandeira do luto e investidos de toda a gravidade que o posto requere, maldiziam intimamente o peso do morto que os impediam de matar o calor no bar do Seu  Tom. As carpideiras cumpriam seu papel comprado pelo defunto, que abastado que era, não poderia se enterrar sem lamúrias. Choravam a dor de ninguém. Todo o bom povo da Vila vestia sua roupa mais cerimoniosa, na esperança de apertar a mão do prefeito ou ganhar um trocado do coronel. E inconscientemente carregavam o peso de seus próprios mortos, rumo a um jazigo inatingível. 
          O coro dos urubus foi marcado por um compasso agudo inesperado seguido do baque surdo que derrubou o caixão das mãos de seus portentosos protetores. Sobre o caixão o cadáver ensangüentado da temerária ave caiu dentro do recém-exposto vazio. 
          Aberto, por um segundo a todos ficou claro que o único corpo inerte naquela procissão era o do urubu e o de si próprios. O padre, fazendo o sinal da cruz, mandou um coroinha retirar aquela ave imunda, e com o caixão fechado, prosseguiram seu caminho, velando o vazio e carregando o peso de seus próprios mortos.
          Felizes ou não, os meninos vadios dos telhados da cidade voltaram às suas casas, carregando apenas pedras nos bolsos rotos e a incansável baladeira na mão. Sobre os ombros, nada.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Do direito de posse

Ao cigarro que nos veste  quando nada mais tenta. 

Como a palavra não falada, em tua boca faço morada, embotando teu sorriso.
Sinto cada papila tua, pupilas minhas, devotas nuas, bailando ao meu prazer.
Derrota tua ânsia de vômito, regozija-te no teu asco, defenda o meu ser.
Te cala que não é hora, não me impeças, não te apavoras, aguarda o meu aviso.

Deleita-te na minha ânsia, se agarre a cada espasmo, teu resfolego eu mimetizo.
Arda em meu desejo, enlouqueço em teu fraquejo, perdido a  padecer.
Tu te tremes, e te esforças, te esmeras e me força, mas só faço estremecer.
E de vontade vou te inflando, minha carne vai pulsando, nos espalhando sobre o piso.

Te encaro e te afogo, te abomino e te afago, não pretendo mais parar.
Sigo em ritmo constante, atendendo meus reclames, teu corpo a gritar.
Te sustentas em teu asco, se entrega ao meu compasso e aceita o que virá.

Fadados lutaremos, mas por mais que resistamos, sei que a hora vai chegar.
Fecha os olhos e aproveita, pois a hora se aproxima, não vou mais me refrear.
Não espalho sobre o piso, pois da garganta ao teu sorriso, tua boca é meu lugar!

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Esse palco não é teu

Bm          F#7                   Em       F#7               Bm
Vai, você vai caçar nos outros, o roteiro da tua vida
Vai, você vai catar os trechos, cutucando sua ferida...
Vai, você quer achar o tempo que perdeu nas noites frias
Bm          F#7             Em       F#7               G
Vai, que agora já amanhece e é cedo para ser dia...

F#                    G
O momento pereceu...
Ontem, hoje não viveu...
Vá rezar prum novo deus...
F#                           Bm
Que esse palco não é teu.

Vem, abre os olhos e sorria, que tudo esmoreceu
Vem, sente a fera que te morde, e faz dela o teu Eu.
Ahhhhhh Vem, pega o fardo que te pesa, e leva um pouco além
Ahhhhhh Vem, acorda o mundo que te sonha, e vai dormir também!

Já se desfez o céu...
E agora tu és réu...
Vá buscar teu próprio véu...
E estrelar o teu papel.

Vai e vem até o fim...
Que tua semente é ruim...
Esse palco não é teu...
Vai buscar teu próprio eu.

Untitled #1

        Estavam os dois abraçados, com as almas tão desnudas quanto os corpos. Jaziam assim imóveis, indiferentes ao tempo e imunes a ele. Ele não ousava falar nada, temendo proferir algo capaz de estragar o momento sublime em que estava. Sua mente passeou por toda a sujeira que vivera até chegar aquele momento, todas os anos e todas as noites que desperdiçara tentando se convencer de que tal coisa como a que vivenciava agora não existia. Olhou longamente para os olhos cerrados dela, imaginando se também estava a se lembrar de toda a lama que vivera ou mesmo se ela apenas dormia. Pensou em todos os pequenos atos que o levaram àquela cama de higiene discutível, em um motel barato. Enfim parecia haver algo reservado a ele diferente de medo e delírio. Respirou fundo, sentindo o ar quente exalado pelas narinas dela. Deliciou-se. Carinhosamente desvencilhou-se dos braços dela e abriu a cortina, apenas o suficiente para que a luz intermitente do poste permitisse achar o maço de cigarros. 
        Abraçada como estava, ela não ousava se mexer, nem mesmo abrir os olhos. Desde de o início daqueles longos minutos de silêncio e imobilidade, apenas esperava ter certeza que o sono ébrio houvesse se apoderado do corpo dele para poder escapulir dali. Havia passado instantes maravilhosos desde que conhecera aquele homem, mas já tinha visto o suficiente para saber que não era do tipo que se levava à vida real. Iria simplesmente embora daquele motel de beira de estrada, sem um bilhete, recado ou nota. Sentiu quando ele delicadamente se levantou e acendeu um cigarro. Desejou abraçá-lo uma vez mais e dividir aquele cigarro, dividir seu corpo, sua alma e qualquer coisa mais. Lembrou de todos os momentos passados desde que casualmente o conheceu, até se encontrarem abraçados nessa cama de higiene discutível. Se deu conta de que as ultimas 24 horas tinham sido as melhores de sua vida. Medo e desespero alternadamente passeavam pelo seu corpo, paralisando seus músculos, suas pálpebras.
        Fitou o corpo nu a sua frente. Já havia se dado conta de que sempre vivera na merda, pois de merda era feito. Não merecia tal coisa como felicidade. Estava morto por dentro, e daquele momento lindo nada de bom viria. Racionalizou toda a problemática que surgia no horizonte e visualizou todo o desespero e dor que se apoderariam dele e também dos que o cercavam. Esticou o braço para longe do luar que substituía o poste recém-queimado e serviu-se de mais uma dose do uísque barato que trouxera.
      Uma onda de coragem temerária despontou em seu peito, enrubescendo sua face. Temeu por um átimo que ele notasse, quase desejando que isso ocorresse. Sentiu seu corpo queimar para receber novamente aquele homem que repudiou à pouco. Respirou profundamente. Abriu os olhos e um grande sorriso, para saudar o início de sua reticente felicidade. Procurou em vão aquele corpo nu para fitar os olhos, entregar-se aos braços e fundir-se à alma. Nem um bilhete, recado ou nota.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Breakthrough

    Acordei. Não cedo o bastante para evitar a tempestade que despencava, mas o suficiente para pegar os ultimos raios de angústia que emanavam do fim da madrugada. Angustia que seria apenas um vislumbre do que me acompanharia pelo resto do dia. Decidido a resolver todas as merdas da minha vida, ou apenas a tomar um porre, rolei preguiçosamente por mais dez minutos em minha cama. Levantei e fiz as abluções que o cotidiano nos obriga, descrente como sou. Descrente ainda, botei o terno velho que não sei como escapou de minhas últimas tentativas de arrecadar fundos e deixei o cheiro de chuva invadir minha alma. Aquela chuva não reservava nada especial para mim, mas mesmo assim molhei as mãos e esfreguei aquela água recendendo a monóxido de carbono e carvão em meu rosto recém-barbeado. Estava tão perdido quanto a humanidade que dormia tranquilamente lá embaixo, e que não suspeitava do que eu faria. Estava perdido, mas acordado.
     Fazia um mês que ela tinha ido. Já tinha provado ser capaz de suportar todo tipo de degradação e rúina, perdas eram apenas mais um capítulo do meu dia. Entretanto naquele momento me dei conta de que algo se partiu dentro de mim, algo que nunca se regeneraria e que não seria possível viver sem. Eis a verdade: ela nunca me pertenceu. Esteve alguns dias em meus braços, de fato, contudo nunca fora realmente minha. Da mesma forma que entrou, saiu de minha vida, e apesar de sentir a dor mais profunda que até então experimentara, eu apenas a deixei ir. Sem essa de bancar o stalker ou de tentar recriar o passado. E os anos passaram sem que fizesse uma loucura ou cometesse pelo menos algo irracional o suficiente para ser correto. Um encontro fortuito, casada com filho em um shopping qualquer, um breve olá, aquele papo de como você está, como vai a sua mãe, que bonito o seu filho, está trabalhando aonde... E só. Nada de trocas de telefone ou daquela transa homérica e raivosa a qual o ensejo clamava por. 
     Nessa época, o processo de decomposição moral que me acometeu já havia começado. E mesmo indo mais baixo do que imaginara ser capaz, a presença ausente daquela mulher me sustentava. Nunca tentei substituí-la pelas moças que minha vida bukowskiana provia, ou encontrá-la no fundo de uma garrafa. Não me atrevia a caçá-la, por motivos que desconheço até hoje. Até que ouvi aquele sobrenome incomum no jornal local. Hoje completava um mês que ela havia se metido naquele acidente estúpido e fatal, uma morte digna para mim. Mas não para ela. Me recusava a aceitar que nunca mais a encontraria fortuitamente em algum supermercado, que nem mais por um átimo veria aquele sorriso ou aquela cara de safada que não via a quase 5 anos. Deixei os outros prantearem o seu enterro e por um mês trabalhei o meu luto com afinco.
       Nem todo álcool, tabaco e pornografia que estava ao meu alcance conseguiram fechar aquela lacuna em mim. A ausência dela encheu minha mente de se´s e talvez´s até um ponto em que respirar era por demais penoso. Um suicídio valoroso não era opção. Uma morte digna para ela, mas não pra mim.
      Por isso hoje acordei decidido. Iria amarrar todas as pontas soltas que havia largado pela minha existência, iria conectar os pontos e seguir a corrente até encontrar um sorriso amigável, uma oportunidade perdida ou um chute nos ovos. Ou pelo menos tomar um porre. Perceber que só se vive uma vez, que o tempo não pára e que a vida é hoje não me bastava, já havia passado dessa idade. Ia realizar hoje o que os últimos 20 anos de colhões espremidos tinham me negado. Ia mudar de emprego, arrumar uma namorada ou fugir para Fiji. Ia abrir uma igreja evangélica e encher o rabo de dinheiro. Ia encher a cara de Blue Label em um restaurante chique e ser preso tentando fugir sem pagar a conta.Ia...
      Nas grandes cidades de hoje, a violência é uma constante. Quinze anos atrás, nunca resistiria a um assalto. Mês passado provavelmente teria surrado o bastardo até que minha mão latejasse. De qualquer forma, falar "não hoje, filho-da-puta", cuspir e dar as costas não parece a saída mais inteligente. O estampido, a dor e o calor que vieram depois se perderam no turbilhão que surgiu a minha frente. Todas as merdas de uma existência se resolveram em segundos, durando tão-somente o tempo necessário para a enxurrada garantir que eu não deixaria marcas. Talvez não em paz, mas ao menos satisfeito, respirei profundamente uma última vez. Melhor assim. Todos sabemos que desde que levantei da cama hoje cedo, mas não o suficiente para evitar a borrasca, estava mais propenso ao porre.


segunda-feira, 6 de setembro de 2010

9 crimes

  Escrever: sem as minhas metaforazinhas e comparações de sempre, sem meu distanciamento emocional de sempre, sem meu ascetismo e conformismo. Sem o compromisso com a derrota, com a doença e a descrença. Quero apenas escrever, copiar mais aos outros e menos a um alter ego que me foge e persegue. Fingir que o poeta não finge e olhar para dentro sem procurar um vazio, ou inventar um. Levantar a cabeça, olhar ao redor e ignorar os pensamentos conspiratórios que forjo. Who wanna be such an asshole?
  Ilusão: para que me iludo. Para que escrevo? Busco um propósito, busco um objetivo, ao menos metas? Me encontro e me perco a cada palavra, ou apenas não estou? (lá vou eu caindo de novo na mesmice, será apenas a realidade?)
  Arte: arte de testar até onde posso chegar, para ver até onde me martirizo. Acato a dor alheia como forma de não me submeter a minha própria. A dor alheia tolhe a minha e a joga entre o Eu e o vazio. Esmaga-a em meu peito roubando meu fôlego e minha dor de cabeça. 
   (des)Controle: gerenciar o sofrimento em camadas e extrair dele tudo que um onanismo sado-masoquista proporciona. 
  Sentir: se enganar é fácil, a dificuldade reside em se manter iludido. Epifanias me varrem a mente todos os dias, o que me obriga a esforçar-me cada vez mais para manter-me entorpecido. Parodoxal. Entorpecido para fingir. Fingir para sofrer, pois sofrer é sentir.
   Negar: negar o que se auto-inflinge é mais que um ato de fé, é um exercício de cara-de-pau.
  Desconstrução: eu sei que a loja vai falir antes que eu junte a grana necessária para comprar o que eu quero. Também não estou apto para um financiamento estatal. Quem sabe alguém vai simplesmente pegar o último do estoque. (É difícil se livrar das metáforas)
  Fugir: fugir do seu pseudo ser para encontrar o seu verdadeiro serve para quê? I´m wearing the inside out.
   Hoje: só mais 5 minutinhos.

sábado, 26 de junho de 2010

Ufanismo, ou o Nirvana dos Vencidos

       Haverá o dia em que  tudo será deixado para trás. A dor, apenas uma cicatriz. Os erros serão motivo de riso. E nos fartaremos a rir! O toque das peles desnudas, a clamar pelo o outro, afagará nossas almas nos dias tristes esperando o momento para nos afogar em solidão. A ausência será tão insuportável que nos obrigará a abdicar de todo nosso eu. Sacrifício mínimo, pois teremos absoluta certeza que ao primeiro sinal do outro tudo ficará bem.
     Nesse dia, o mundo se apequenará ao seu real tamanho. A sede será eternamente esquecida, a fome, superada e cheios um do outro nos fartaremos, até estarmos saciados. E cheios um do outro, sorriremos ao lembrar de como éramos tolos ao necessitar de tudo o que agora era vão e inútil em nossa redoma sacra.  
      Não serão mais necessários planos, pois sempre estaremos no lugar certo, na hora certa. O dia sempre será mais belo do que o anterior e as intempéries que surgirem serão somente manchas a nublar nosso arrebol. Emanaremos um jardim por onde passarmos, florindo territórios estéreis com a vastidão de nossa completude. E povoaremos cada centímetro com o reflexo da nossa felicidade.
     O mundo poderá sentir inveja, e haverá quem tente corromper e conspurcar nosso paraíso privado. Sentiremos pena desses esforços ridículos, evitando o escárnio aos que tentarem apagar o indelével. O tempo poderá se comover e congelar todos os momentos, estabelecendo um fluxo perene de saciedade e sintonia. Pode até, vingativo tempo, nos negar os pequenos momentos e arrastar um de nós  prematuramente a um fim sozinho, mas nunca solitário. A lembrança, dádiva inefável, reconfortará até o dia que sejamos um para sempre.
       Porém não é hoje esse dia. Talvez não seja amanhã, ou mesmo nunca chegue. Hoje há o Eu, o mesmo que não mais me nutre e brada por algo inalcançável. Posso atender à busca irracional e imprevisível a qual sou conclamado ou então somente esperar, sendo apenas meio, e vagar na minha própria jornada irracional e imprevisível rumo ao dia seguinte. Não ouso escolher um caminho, então erro pela estrada aberta a minha frente entoando o mantra dos conformados: "Talvez amanhã". 

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