Acordei. Não cedo o bastante para evitar a tempestade que despencava, mas o suficiente para pegar os ultimos raios de angústia que emanavam do fim da madrugada. Angustia que seria apenas um vislumbre do que me acompanharia pelo resto do dia. Decidido a resolver todas as merdas da minha vida, ou apenas a tomar um porre, rolei preguiçosamente por mais dez minutos em minha cama. Levantei e fiz as abluções que o cotidiano nos obriga, descrente como sou. Descrente ainda, botei o terno velho que não sei como escapou de minhas últimas tentativas de arrecadar fundos e deixei o cheiro de chuva invadir minha alma. Aquela chuva não reservava nada especial para mim, mas mesmo assim molhei as mãos e esfreguei aquela água recendendo a monóxido de carbono e carvão em meu rosto recém-barbeado. Estava tão perdido quanto a humanidade que dormia tranquilamente lá embaixo, e que não suspeitava do que eu faria. Estava perdido, mas acordado.
Fazia um mês que ela tinha ido. Já tinha provado ser capaz de suportar todo tipo de degradação e rúina, perdas eram apenas mais um capítulo do meu dia. Entretanto naquele momento me dei conta de que algo se partiu dentro de mim, algo que nunca se regeneraria e que não seria possível viver sem. Eis a verdade: ela nunca me pertenceu. Esteve alguns dias em meus braços, de fato, contudo nunca fora realmente minha. Da mesma forma que entrou, saiu de minha vida, e apesar de sentir a dor mais profunda que até então experimentara, eu apenas a deixei ir. Sem essa de bancar o stalker ou de tentar recriar o passado. E os anos passaram sem que fizesse uma loucura ou cometesse pelo menos algo irracional o suficiente para ser correto. Um encontro fortuito, casada com filho em um shopping qualquer, um breve olá, aquele papo de como você está, como vai a sua mãe, que bonito o seu filho, está trabalhando aonde... E só. Nada de trocas de telefone ou daquela transa homérica e raivosa a qual o ensejo clamava por.
Nessa época, o processo de decomposição moral que me acometeu já havia começado. E mesmo indo mais baixo do que imaginara ser capaz, a presença ausente daquela mulher me sustentava. Nunca tentei substituí-la pelas moças que minha vida bukowskiana provia, ou encontrá-la no fundo de uma garrafa. Não me atrevia a caçá-la, por motivos que desconheço até hoje. Até que ouvi aquele sobrenome incomum no jornal local. Hoje completava um mês que ela havia se metido naquele acidente estúpido e fatal, uma morte digna para mim. Mas não para ela. Me recusava a aceitar que nunca mais a encontraria fortuitamente em algum supermercado, que nem mais por um átimo veria aquele sorriso ou aquela cara de safada que não via a quase 5 anos. Deixei os outros prantearem o seu enterro e por um mês trabalhei o meu luto com afinco.
Nem todo álcool, tabaco e pornografia que estava ao meu alcance conseguiram fechar aquela lacuna em mim. A ausência dela encheu minha mente de se´s e talvez´s até um ponto em que respirar era por demais penoso. Um suicídio valoroso não era opção. Uma morte digna para ela, mas não pra mim.
Por isso hoje acordei decidido. Iria amarrar todas as pontas soltas que havia largado pela minha existência, iria conectar os pontos e seguir a corrente até encontrar um sorriso amigável, uma oportunidade perdida ou um chute nos ovos. Ou pelo menos tomar um porre. Perceber que só se vive uma vez, que o tempo não pára e que a vida é hoje não me bastava, já havia passado dessa idade. Ia realizar hoje o que os últimos 20 anos de colhões espremidos tinham me negado. Ia mudar de emprego, arrumar uma namorada ou fugir para Fiji. Ia abrir uma igreja evangélica e encher o rabo de dinheiro. Ia encher a cara de Blue Label em um restaurante chique e ser preso tentando fugir sem pagar a conta.Ia...
Nas grandes cidades de hoje, a violência é uma constante. Quinze anos atrás, nunca resistiria a um assalto. Mês passado provavelmente teria surrado o bastardo até que minha mão latejasse. De qualquer forma, falar "não hoje, filho-da-puta", cuspir e dar as costas não parece a saída mais inteligente. O estampido, a dor e o calor que vieram depois se perderam no turbilhão que surgiu a minha frente. Todas as merdas de uma existência se resolveram em segundos, durando tão-somente o tempo necessário para a enxurrada garantir que eu não deixaria marcas. Talvez não em paz, mas ao menos satisfeito, respirei profundamente uma última vez. Melhor assim. Todos sabemos que desde que levantei da cama hoje cedo, mas não o suficiente para evitar a borrasca, estava mais propenso ao porre.