Os urubus assentados sobre os telhados do centro velho da cidadezinha não preconizavam bom agouro. Naquele calor infernal grasnavam vaiando o enterro alguns metros abaixo, ou apenas espantando a quentura. Ritmicamente, o coro maledicente era interrompido pelo bater das pedrinhas arremessadas pelas baladeiras dos meninos postados nos telhados próximos, tais quais atiradores de elite. Impassível ao embate travado alguns metros acima, tocava-se o enterro e choravam-se os mortos.
Os carregadores do caixão, portas-bandeira do luto e investidos de toda a gravidade que o posto requere, maldiziam intimamente o peso do morto que os impediam de matar o calor no bar do Seu Tom. As carpideiras cumpriam seu papel comprado pelo defunto, que abastado que era, não poderia se enterrar sem lamúrias. Choravam a dor de ninguém. Todo o bom povo da Vila vestia sua roupa mais cerimoniosa, na esperança de apertar a mão do prefeito ou ganhar um trocado do coronel. E inconscientemente carregavam o peso de seus próprios mortos, rumo a um jazigo inatingível.
O coro dos urubus foi marcado por um compasso agudo inesperado seguido do baque surdo que derrubou o caixão das mãos de seus portentosos protetores. Sobre o caixão o cadáver ensangüentado da temerária ave caiu dentro do recém-exposto vazio.
Aberto, por um segundo a todos ficou claro que o único corpo inerte naquela procissão era o do urubu e o de si próprios. O padre, fazendo o sinal da cruz, mandou um coroinha retirar aquela ave imunda, e com o caixão fechado, prosseguiram seu caminho, velando o vazio e carregando o peso de seus próprios mortos.
Felizes ou não, os meninos vadios dos telhados da cidade voltaram às suas casas, carregando apenas pedras nos bolsos rotos e a incansável baladeira na mão. Sobre os ombros, nada.